Da quadratura,

Padeci por instantes de um desejo quase incontrolável de rememorar as palavras que vos escrevo neste momento. Estava mais no chão do que no ar. As toneladas de razão e mais razões que se pesavam em meus pensamentos distanciavam-me dos meus afetos. “Essa coisa horrorosa de tudo fundamentar é tão doentia!” Estou tentando escapar disso. Tentando ouvir o tom fundamental das palavras aos ouvidos, me deparei com a deusa das lembranças. Como musa, ela se manifestou e passou a me encantar. Como efeito, o poético me possuiu. Parecia não ser eu o escolhido para ouvir tais palavras. É assim. Sobre a decisão: se da palavra a me escolher ou se eu da palavra; importava mesmo recordar. Recordar os sentidos re-colhidos. Recordar a saga da linguagem e a potência devastadora das aberturas afetivas.  

Recordara do quente no interior do peito. O sentido que se dá quando se está seduzido pelo seio essencial da linguagem. Recordara também dos esboços de uma existência passada. Aquele tipo de lance de olhar que num breve instante ilumina toda uma vida. Vida que se envereda risco a risco. Recordara da dor, do amor, da iminente passagem, do ainda-não. Recordara a morte e nela se amainava. Recordara dos infindáveis diálogos com Manuel, Wittgenstein, Nietzche, Heidegger, Rimbaud e Wagner. Mas recordara também das recusas e fugas daqueles ouvidos familiares. Das ausências de fina-sintonia dos mais próximos e, da demasiada humanidade dos humanos, parecia haver de igual modo uma sutil justificação. E era. Era porque aquela força preponderante da vontade de razão os tinha mantido no chão. O fato deles não se elevarem, de alguma maneira, me entristecia. Uma vez assumida, a tristeza se mostrava como condição sui sem a qual o poeta jamais poderia recordar. 

Recordar a poética de tudo que há não é um ofício dos poetas. É de todo aquele que vê nas quimeras a vizinhança mais próxima de seu lar. Quando me foi permitido ver na arte de J. Borges o transcendente, não foi porque possuía olhos de lince, mas porque situado no templo da linguagem me foi presentado ser arrebatado. Quando o poeta se eleva, assim como o beija se eleva à flor e a toca, o poeta recorda. Sua poesia se dá como dom desde a essência de uma maneira tal que seu poetar rememora sempre e a cada vez possibilidades sidas. Sidas são sempre possibilidades abertas naquele lugar onde todas as memórias se essenciam. Quando se recorda se ampara. Amparado é todo aquele que escuta o tom fundamental da palavra que se mentem no advir das profecias do poeta. Que isto seja sabido: o poeta não quer. Seu querer sempre já se encontra amainado num não. Lindo mesmo é se manter neste não constitutivo do existir humano. Desse modo se recorda num não [Not] afinado, repleto de bem querer. Um querer bem que quase não quer por não ser um querer propriamente. Mas ao contrário, um ser querido. Querido da deusa (Mnemosine), mobilizado pelas forças de um rememorar-em-recordando e posto nela (memória) permanecer em docilidade.  

Das recordações – daquelas que ainda recordo – parece haver um abismo esquecido. Para ele lanço minhas mãos, e as lanço na espera do poder ser alcançado antes do crepúsculo. Quiçá –, os viventes e EU – sermos alcançados e de igual modo albergados nas memórias. Frequentemente nossos destinos são esquecidos. Um existir que se esmera nos tratos estéticos e neles permanecem, apenas fuga esquecendo. Quando – em seu romance – Thomas Mann descreve a vontade de fuga de Gustav Aschenbach, ele parece recordar de si mesmo. Ao fugar, Aschenbach se avia para suas possibilidades sidas. Aquelas possibilidades de um ainda-não que duram os instantes teimosos num durante inteiro de nostalgias. Um desobrigar de si e de todo trato mundano. Um afrouxar-se. Um tal rememorar sido que ilumine os sentimentos de pertença inalienável a tudo. Uma força incontrolável de esquecer para recordar. Se não for um delírio de minha parte, parece que nossos destinamentos se entre-cruzam e a medida é a deusa. Eu, Aschenbach, Thomas e tu que me lê, são os que são na medida que recordamos. 

Sobre todas as coisas que não foram ditas, as recordarei noutra ocasião. 

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Sobre o Autor

Kadu
Kadu

Escritor, ensaísta, professor de fenomenologia hermenêutica heideggeriana. Pesquisador independente. Linguagem e técnica são suas vertentes de pesquisa. Formado em rádio e tv com mais de duas décadas dedicadas a comunicação. É criador da comunidade heideggerfacil, practitioner em PNL, locutor publicitário, radialista, ator e músico. É palestrante e consultor em comunicação com mais de 32 anos de experiência. E-mail: contato@kadusantos.com.br

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