Atenção! Esse texto é uma descrição resumida da aula ministrada por mim para os membros da quadratura no dia 23/07/2025 de forma remota.

Bem, hoje iremos versar acerca do § 3. do texto “Ontologia: hermenêutica da facticidade” de 1924. Já sabemos que este texto diz respeito a algumas conferências que Heidegger realizou em Freiburg. Aqui, ele está ensaiando — já desde 1919 — e experimentando algumas das noções existenciais que, posteriormente, culminarão na analítica do Dasein em Ser e Tempo de forma mais estruturada. Como mencionei, ele está preparando o caminho para pensar uma facticidade, uma existência que segundo o nosso filósofo não deve ser objetivada. Mesmo que ela possa ser tratada como objeto, tal abordagem inevitavelmente mina as possibilidades inerentes a essa mesma existência. 

Portanto, dizer o que é a vida fática, o que é em seu ser o homem, é objetificar um ente que, por sua essência, não se deixa reduzir a um objeto determinado. Nessa objetivação, perde-se a dinâmica essencial deste acontecer existencial [Dasein]. É justamente isso que está em jogo. 

Para tal investigação, Heidegger vai lançar mão de um método: o fenomenológico-hermenêutico. Já compreendemos o significado histórico do termo “hermenêutica”, e agora veremos como Heidegger o adota para sua análise. O objetivo é fazer uma exegese capaz de revelar como [Wie] a vida fática, a nossa própria existência cotidiana, se manifesta. A proposta de Heidegger no parágrafo terceiro é, portanto, pensar a hermenêutica como autointerpretação da facticidade. 

O que seria, então, uma autointerpretação da facticidade? O próprio prefixo ‘auto’ já nos dá uma pista. Somos nós mesmos quem realizamos essa hermenêutica. Não se trata de um teórico que observa o mundo de fora para interpretá-lo; o papel do teórico é interpretar a sua própria facticidade. A existência que está em jogo é a de cada um de nós. 

Aqui, Heidegger utiliza o termo “facticidade” para representar uma estrutura da vida fática, uma determinação dela. Contudo, não se trata de uma determinação no sentido fechado. A facticidade se relaciona a um âmbito de mobilidade; portanto, não se trata de uma determinação estanque. É um acontecer no âmbito da nossa própria existência. O Dasein, por ser hermenêutico, está constantemente interpretando a si mesmo. O desiderato deste parágrafo é, então, trabalhar a noção de hermenêutica como um modo de auto se interpretar e comunicar a facticidade — primeiramente, a nossa própria. 

O Caráter da Existência: Ocasionalidade e Mobilidade 

Aqui retomamos o fenômeno da ocasionalidade, que vimos na primeira aula. O que é essa ocasionalidade? É o instante que continuamente se dá, um instante que, por sua natureza, nunca é estático. É justamente esse caráter de mobilidade que determina a existência ontologicamente — e quando digo “determina”, não me refiro a uma determinação ôntica, estanque, mas a uma estrutura ontológica. 

Não é uma estrutura que se fecha e se encerra, mas uma estrutura vigorante, pois está sempre em jogo. O Dasein (o “ser-o-aí”) está aberto para si, posto numa abertura que lhe permite sustentar seu mundo, compreendendo-o, interpretando-o e correspondendo-o. Por isso a existência é hermenêutica; ela é uma exegese de si mesma. 

A existência só se deixa acessar faticamente. Nada se pode dizer sobre ela sem que ela mesma se exponha enquanto situação. Aqui, algumas palavras são fundamentais. A existência só se permite acessar no factum, que não é o fato bruto, mas o fato de “fazer-se” a cada vez. Nada pode ser objetificado sem que a existência se revele em cada situação, em cada instante, no seu modo próprio de “dar-se”. Isso veda, de forma absoluta, a noção de que “fulano é assim” ou “sicrana é assado”. Aquele paciente que chega com uma questão nos consultórios terapêuticos não pode ser encaixado numa determinação fechada de antemão que orienta um tratamento fixo.  

A existência deve ser compreendida como um instante histórico-fático, estruturado em horizontes hermenêuticos. O ser humano que chega até nós traz consigo um mundo que “munda”, que está em constante mobilidade. Ele se apresenta numa determinada situação, mas essa situação é fluida. Garante-se, assim, um caráter de mobilidade àquele indivíduo, àquela pessoa. Ele não é um “o quê”, mas um “como” de manifestações. 

Heidegger inicia o terceiro parágrafo afirmando que sua investigação não lançará mão do termo “hermenêutica” em seu sentido moderno, que seria o de interpretar o que o outro diz. Antes de interpretar o mundo ou o outro, é necessário acolher, acessar e concentrar o meu próprio ser. O que eu faço — seja na ocupação, na produção ou nas relações — tem como foco primário o meu próprio ser. Pode parecer uma noção egóica, mas para Heidegger, a estrutura existencial se baseia primariamente no ser. Ser-si-mesmo é ser-com-o-outro, ser-no-mundo. Esses são os existenciais fundamentais que estruturam o ser do Dasein.  

A Tarefa da Hermenêutica e a Indicação Formal 

A expressão hermenêutica indica um modo unitário de abordar, concentrar e acessar a vida fática para questioná-la e descrevê-la. Prefiro o termo “descrição” a “explicação”. Descrever a facticidade a partir dessa noção unitária é um papel fundamental. Tudo isso se insere na estrutura da fenomenologia. Quando Heidegger fala em “concentrar”, ele não sugere que tudo no fenômeno seja fundamental. Concentrar-se é voltar-se para o essencial. Existem elementos ditos pelo próprio fenômeno que são relevantes, e outros que não. A fenomenologia é, por isso, um estudo dos fenômenos, onde precisamos acessar, questionar e abordar o que é elementar. 

A hermenêutica, em seu sentido originário, determina uma unidade na comunicação (hermeneuein), ou seja, na interpretação da facticidade que conduz ao encontro, à visão, à maneira e ao conceito. Esses termos são fundamentais para aclarar nossa visão. O encontro se dá com o fenômeno em sua totalidade, incluindo a relação com o Mitdasein (o “ser-com”), aquele com quem compartilho o mundo. A comunicação visa tornar comum o nosso “ser-com”. Nossa existência é compartilhada, e por isso a diferença, mesmo na relação com um adversário, é civilizatória e fundamental. Tornar manifesto o meu ser para o outro, tornando comuns as nossas diferenças, é salutar. Isso se dá num horizonte hermenêutico. 

Para isso, quero trabalhar com vocês um termo chave: a Indicação Formal. É crucial que guardem este termo. 

Indicação formal é diferente do que comumente compreendemos por “conceito”. O conceito opera como uma síntese do múltiplo; ele define e, ao simplificar os fenômenos, arrisca-se a engessar a vida fática. A simplificação nem sempre é salutar. Já a indicação formal funciona de modo diferente. Ela é uma espécie de aceno, que indica uma forma possível. Contudo, somos nós mesmos, em nossa existência, que preenchemos essa forma, pois a indicação formal se mantém intencionalmente aberta, permitindo o fluxo da existência. 

Como poderíamos conceituar a existência se ela é pura mobilidade? É por isso que Heidegger utiliza o artifício da indicação formal. Esse apontamento não é uma determinação, mas um gesto que seguimos e preenchemos. Depois, ele se esvazia e precisa ser preenchido de novo, para manter seu caráter aberto. Heidegger propõe uma hermenêutica da facticidade que não busca uma determinação final, mas se preenche constantemente a partir de uma indicação formal. A beleza disso, diferente das teorias do conhecimento que fecham e determinam, está na dinâmica aberta da própria existência. 

A Existência como Esboço e a Interpretação 

Como já vimos, nós somos hermenêuticos em nosso ser. Primeiro compreendemos, depois interpretamos. Já somos lançados num mundo constituído historicamente, com estruturas normativas e culturais. Nós interpretamos essa estrutura. Olhamos para nosso ponto de partida, para o mundo, e o compreendemos, acessando informações e articulando sentidos. Depois, comunicamos. Por isso, o horizonte de sentido nos oferta não apenas os significados, mas também o dizer que parte deles. 

Isso é constitutivo do nosso ser; somos, na essência, seres hermenêuticos. Se não pudéssemos elaborar, acessar e interpretar, estaríamos fechados para o mundo. A fala não vem do nada; ela emerge de uma reelaboração contínua de experiências dadas. A tarefa fundamental da hermenêutica é tornar acessível o ser do Dasein em cada ocasião, manifestando-o em cada instante. Não é possível, portanto, objetificar ou determinar o comportamento de alguém de forma definitiva. A repetição é sempre distinta. 

A hermenêutica, como propõe Heidegger, é a possibilidade de tornar transparente para o Dasein sua própria condição. A existência se faz como um esboço: algo que está sempre se fazendo e nunca se acaba. É um a-fazer, um vir a ser. Existir é esboçar-se, é manifestar-se como não acabado. O acabado é apenas o fim, a morte, que manifesta a totalidade do Dasein

A hermenêutica torna nossa condição transparente e, por isso, necessitamos nos comunicar. Se fôssemos seres acabados, não haveria essa necessidade. A resolução nunca é definitiva. O indivíduo está sempre numa tensão existencial, buscando um equilíbrio que é, por natureza, dinâmico. O equilibrista não “chega” ao equilíbrio; ele “tenta” equilibrar-se para não cair. A hermenêutica torna essa condição transparente. 

A compreensão tem sua origem na interpretação. Não é uma atitude disciplinar, mas um movimento distinto. O Dasein não precisa se inclinar para o objeto de estudo, pois ele já está aberto para o mundo por meio do “como” de sua própria facticidade. Ele está desperto para si mesmo. Este “estar desperto” é um caráter filosófico do nosso ser, um espanto que nos arrasta para as raízes do nosso ser. 

Conclusão: A Investigação do Ser e a Tarefa Filosófica 

O tema da investigação hermenêutica é quem nós mesmos somos, em cada ocasião. É apontar para este ente particular, e não para uma noção abstrata de “sujeito” ou “homem” vinda da biologia ou da antropologia. A tarefa de uma hermenêutica fenomenológica é investigar o Dasein em cada ocasião, como um ente não determinado em seus aspectos gerais. 

Isso nos leva a questionar: por que este ente? Porque ele, em seu ser, é hermenêutico e se questiona. Ele busca enraizar-se. Algo nos concita a buscar as raízes do nosso ser. Estamos aqui habitando a partir dessas raízes, tentando compreender o que as teorias do conhecimento determinam como sujeito e, ao mesmo tempo, propondo um novo olhar para a existência em seu modo de manifestação. O foco não é “o quê”, mas “o como” de nossa própria existência. 

A vida fática se mostra no que lhe é mais próprio: seu personalismo singular. Não como uma determinação pronta e acabada, mas como algo que se desvela. É preciso pensar filosoficamente, com critérios e métodos. Heidegger nos oferece uma via. No artigo que rememora a exegese de Agostinho sobre o Gênesis, ele destaca algo brilhante. Quando Deus diz “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, o verbo está no plural (“façamos”), sugerindo um ato contínuo, um “fazer-se”. Diferente dos outros seres, que foram “feitos” de forma acabada, o ser humano é um “façamos”. 

O fato de ser do humano é um “a se fazer”. O esboço existencial é um contínuo. Em cada ocasião, está em jogo um fazer a si mesmo. Não é algo pronto, mas um por-fazer, uma tarefa de colocar em jogo o meu próprio ser. A existência é um esboço existencial. Esta é a beleza excepcional da visada de Heidegger. 

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Sobre o Autor

Kadu
Kadu

Escritor, ensaísta, professor de fenomenologia hermenêutica heideggeriana. Pesquisador independente. Linguagem e técnica são suas vertentes de pesquisa. Formado em rádio e tv com mais de duas décadas dedicadas a comunicação. É criador da quadratura, practitioner em PNL, locutor publicitário, radialista, ator e músico. É palestrante e consultor em comunicação com mais de 32 anos de experiência. E-mail: contato@kadusantos.com.br

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