Agostinho em suas Confissões, escreve: “A fonte (cujas águas se aglomeram) num pequeno reservatório é (depois) mais abundante e fornece o caudal a diversos regatos para uma extensão mais ampla do que a de qualquer um deles.” Assim, ao que parece, é o pensamento. Se o pensamento se dá como fonte, qual seria a condição de possibilidade para seu jorro? Ensaiaremos o pulso.
Dentre tantos enigmas, há um, místico até, que dá o impulso1 ao pensamento a ponto de torná-lo um querer e um ser querido, a mais alta devoção do ente humano. Sua penúria e piedade. Refiro-me ao pulso no cerne do pensável. O que é isto que se nos dá como pensar? Formulada de outra maneira, poder-se-ia perguntar: o que é isto que se dá para nós com o nome de pensamento? Seu que “é” isto (?) do pensamento se dá na maneira de se dar.
Trata-se de circunscrever nas nuvens, as que obliteram a visão direcionadora do pensável em sua maneira de se doar. Não o princípio do pensamento, princípio é diferente de origem, mas o nascedouro, no próprio acontecer do pensamento no instante que se pensa, enquanto se pensa. Trata-se de pensar acerca do pensável.
Há um pressuposto – dentre tantos em toda tradição – que gesticula à gênese do pensamento, enquanto isto que se produz a si mesmo na medida em que se faz. Dito de outro modo, o pensamento é afirmação de si mesmo na medida em que se afirma. O pensamento só é pensamento na medida em que se dá como movimento que se assegura, sustenta e produz a si. Neste sentido, o pensamento pressupõe autodoação. Assim sendo, só se dá pensamento para quem pode receber ou corresponder determinado impulso. Dá-se pensamento no instante a partir do qual um ente pensante precisa produzir a si mesmo e, portanto, corresponder a uma determinada interpelação que o impulsiona a ir adiante de si mesmo.
O que é isto – um impulso para ir adiante de si? Isto é o que se compreende como um ato de transcendência. É transcender. Ato de ultrapassar a si mesmo. Ir além de si e alcançar a totalidade. O fenômeno da totalidade se dá como o outro, isto é, na diferença. No entanto, o outro, enquanto diferença, resguarda unidade na mesmidade. Esse outro, enquanto diferença, na medida que concita o pensamento a ir além de si mesmo, não é uma diferença conflitiva com o que de certo modo já se compreende, ao contrário disso, esse outro é parte constitutiva desse pensamento que já compreende a si mesmo enquanto se pensa. A questão é que o impulso do pensamento se avia para o pensável que se dá como encobrimento. Isto que ainda não se compreende em sua totalidade. A totalidade do fenômeno ama se encobrir. Na medida em que se encobre para o pensamento, isto que “é”-(ser) o mais sagrado dos motivos, se mantém conclamando a humanidade do homem.
Alguma das questões que foram colocadas na presente antessala pode mostrar o cerne do impulso e, de igual modo, nos colocar diante de um afeto que impulsiona o pensamento. A pergunta feita, “que é isto – que se dá para nós como pensamento?”, poderá ser respondida com a palavra “ser”. Mas, isto, o ser, não pode ser determinado em seu ser. A não possibilidade de determinação do ser, que é próprio do ser enquanto tal, coloca em jogo o pressuposto de que o pensamento pode ser determinado no pensamento. O pressuposto do pensamento que se sabe, pensa a si e se produz a si, e, portanto, o pensamento absoluto, ao que parece, lança, sem pudor, o pensável no horizonte de encobrimento. É aí que mora a beleza do impulso. Onde? No jogo do encobrimento. Se para Hegel o ser se dá como pensamento absoluto, isto só foi possível porque o ser ama se velar em cada impulso para o desvelo. Nosso caminho nos coloca diante da pergunta: que é isto – o impulso? Como ele se dá e mobiliza o ser do homem para o ser da totalidade?
O termo im é repleto de sentidos. O primordial é que ele traz o pulso para o âmbito da permanência e mantém, nós pensadores e poetas, tomados por um afeto. Se diz um afeto porque não pretendo incorrer no engano de ser tomado por uma miríade de afetos como impulso para o pensável. Um afeto de abertura se dá como estranheza. Uma estranha ausência disso que ama se encobrir. Tanto o impulso quanto o im-do-pulso nos é familiar, já a origem do pensamento…
A abertura para isto que concita o pensamento no modo da estranheza parece ser propriamente o impulso para o pensamento. Se há algo que se deve meditar acerca da pulsão, é que tal pulsão parece ser eminentemente afetiva e ontológica. O homem se mantém no cerne [im], no pulso do ser. No texto “Para quê poetas em tempos de penúria” (sic), Heidegger dirá que a physis [φύσις] enquanto Seer [Seyn] joga o ser do Dasein no risco. Inobstante isto – que o ser do Dasein seja jogado no risco, o ser do Dasein ama o risco. Este amar de certo modo se destina [Moira] ao homem como pulso para o pensável que se abre afetivamente no modo da estranheza.
Num texto recente que escrevi para uma certa exposição acadêmica, intitulado “Que é isto – o filosofar (?) numa estranha ausência?”, pude meditar com os participantes acerca do impulso para o filosofar. Tratei, ainda que resumidamente, sobre a disposição tonal que abre o nosso ser para a questão da filosofia. A questão aqui é a mesma. Isto que se dá a pensar e que requisita o nosso ser para ir além de nós, se abre como o não familiar. Mas por que uma tal estranheza convoca e concita? Num clássico texto de Heidegger objeto de uma conferência intitulado “Que é metafísica?”, Heidegger dirá: “Somente porque o nada está manifesto nas raízes do Dasein pode sobrevir-nos a absoluta estranheza.” Aqui, ao que parece, há um laivo disto que é a “borda tonal” da abertura que mantém (o pulso) o nosso ser desperto – em correspondência ao pensável. Correspondência que se envia a nós mortais. A absoluta estranheza só pode se manifestar nas raízes da nossa existência. Isto que é estranho, e, portanto, ainda não compreendido fenomenalmente em sua totalidade, é o que nos mantém despertos, isto é, impulsionados para ir além de nós.
Em suma, parece que isto, o pensamento, em fina correspondência ao pensável, que mantém o nosso ser desperto e assombrado, que estranhamente nos abre diante no ainda não familiar, que se dá como destino impiedoso para cada um de nós, é propriamente o cerne do pensamento. O que fora dito nos convoca a amar o jogo da estranheza, mantendo-nos habitando isto que nos joga para o encobrimento. Isto que concita nos mantém despertos. O que se mostra familiar vela o ainda não familiar. Alguns dentre nós se contentará com a descoberta e lamentavelmente adormecerão no conforto do aparentemente já sabido. Outros, dentre nós, despertos, estranharão diante do conhecido e se espantarão com a clareza do que lhes aparece de modo a serem jogados de volta para a questão: que é isto – a clareza?
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