Texto para exposição no III Encontro de Filosofia Fenomenológica do Recife. Evento realizado pela NUPEFE da UFPE. Exposição realizada no dia 01/07/2025 às 09h30m.
Meus caros e caras, a tematização da filosofia pode ser realizada de muitas maneiras e, ainda assim, parece que isto que se determina como filosofia se ausenta das determinações últimas. Mas por que ao longo das eras permanecemos tentando encontrar o chão a partir do qual se pode fundamentar a totalidade do mundo? Qual o sentido que possibilita a abertura para o sentido próprio da filosofia? Que tonalidade fundamental é essa que nos abre para isso que sempre nos concita a ir além de nós? E como se dá o filosofar em seu manifestar-se em nós?
O que vos proponho é retomar, mais uma vez, a pergunta pelo sentido da filosofia a partir de um caminho que nos convoque para filosofar. Para essa finalidade, não precisaremos de nenhuma filosofia, mas tão somente escutarmos o logos. Quando digo escutarmos, retomo aquilo que Heráclito há mais de 2000 anos nos aconselhou: “Se não haveis escutado a mim, mas o sentido, É (Ser) sábio dizer no mesmo sentido: um é tudo”2 (Snell). (Heidegger, ano, 183).
Como vocês devem ter percebido, o que pretendo encontrar é como se dá isto que é [tí estin] a essência do filosofar. Também tentarei articular um pensamento que nos mostre qual pode ser a disposição tonal que abre o Dasein para o filosofar.
O nosso primeiro passo de pensamento segue a orientação da pergunta: onde está fundada a essência de fundamento?
Para responder essa pergunta deveremos realizar o passo de volta a questão sobre o sentido de ser em geral realizada em Ser e tempo. No § 58 no tratamento acerca do apelo para a assunção do querer ter consciência de sua [Ruf] culpa [Shuld], pode-se compreendê-la como não causa nem ocasião e, portanto, não fundamento de si mesmo. Para Heidegger o Dasein, enquanto culpado é “[…] ser-fundamento de um ser determinado por um não – isto é, ser fundamento de uma nulidade” (Heidegger, 2012, Ser e tempo, p. 777).
Mas essa nulidade, em seu sentido ontológico, também se vela numa obscuridade. Se ausenta. Um tal não de fundamento não só constitui a essência do ente filosofante, mas “[…] também para a essência ontológica do não em geral” (Heidegger, 2012, Ser e tempo, p. 783).
Na tentativa de capturar a essência do Sofista e expor sua verdade, Platão e o Estrangeiro de Eleia se surpreendem com o modo escorregadio com que se lhe ausenta o a essência do sofista. Dirá o Estrangeiro de Eleia: “[…] mas é realmente admirável esse homem e muito difícil de perceber, já que agora se acha muito bem refugiado […], numa forma de aporia” (Platão, 2011, p. 200, 236d). A ausência de fundamento da questão sobre o que é isto – o sofista? também se ausenta no diálogo de Platão com o Estrangeiro de Eleia.
Ser é propriamente o destino comum de toda filosofia — a questão de ser e ente — desde a gênese. Um Eros que mobiliza as grandes disputas do pensamento ao longo das eras. Seja rememorando o destino, seja no esquecimento da questão fundante do filosofar; para cada instanciação este que é tão estranho concita sempre uma participação no diálogo do ser.
Mas o que é que está em jogo nisto que para o filosofar se ausência? É a verdade. A verdade como Aletheia, como logos como destino. Não será possível discorrer sobre os sentidos que Heidegger dá para cada uma delas, não obstante isso, ambas dizem e revelam o mesmo.
Aletheia é o mesmo que logos, pois ambos des-velam o vigente em sua vigência (o ente no ser). Heidegger dirá: “Todo des-encobrir arranca o vigente do encobrimento. Des-encobrir carece sempre de encobrimento para des-encobrir. A ἀλήθεια repousa e vige na λήθη, extrai o que a λήθη mantém retraído.” (Heidegger)
Nisto fica claro que a questão da filosofia é o filosofar. Isto que permanece mobilizando o pensamento ao logo das eras. Um convite, segundo Heráclito, para ouvir o sentido e participar no logos, na harmonia, homologein, isto é, o que propriamente se compreende como a questão da philósophia.
Quanto ao destino, isto que conhecemos pela palavra moira, é propriamente o envio do sophon, isto é, o envio sábio para que cada ente concitado, que na ausculta do sentido se harmoniza com o logos, participa. Está em jogo aqui a parte de cada qual segundo a maneira da escuta do λόγος enquanto recolhimento e na medida da co-respondência amainada.
A questão da filosofia parece ser a questão de uma permanente ausência. Isto que é (tí estin) a filosofia é o caminho para o sophón. Participa-se cada ente em seu ser, no ser, e em cada caso, na geração.
Mas, como irrompe em nós a convocação para participar da questão que se destina a cada um segundo a medida de uma sintonia? O que nos abre para o filosofar? No ano de 1929 ao final da preleção intitulada “Que é metafísica?”, Heidegger diz: “Somente porque o nada está manifesto nas raízes do Dasein pode sobrevir-nos a absoluta estranheza.” Ao que parece, é a absoluta estranheza que se abate sobre o Dasein que lhe concita, num apelo, a manter-se desperto para a questão do ser.
Apesar disso, a estranheza não lhe sobrevém do ente que se torna manifesto, ao contrário disso, é o seu caráter de não fundamento e, portanto, o nada que uma disposição estranha lhe abre para o filosofar. Em Ser e tempo Heidegger dirá: “[…] o estranhamento persegue o Dasein e ameaça a sua esquecida perda de si mesmo (Heidegger, 2012, Ser e tempo, p. 761).”
O fundamento de nossa existência é estranho a nós. Segundo Heidegger, há um dispositivo que abre a existência do Dasein para a sua ausência de fundamento que lhe é constitutiva. Tal dispositivo é a angústia. Na angústia esse ente se singulariza posto diante da sua finitude.
Enquanto sínteses do nosso caminho percorrido, seria a ausência o fundamento de nosso filosofar? Seria a disposição estranhada a abertura tonal do filosofar no Dasein?
Em suma, a questão acerca do filosofar parece que nada mais é do que um modo deste ente ser tomado desde as raízes por uma estranheza. Por essa razão somos concitados para algo que nos chega como questão. Nossa busca não está assentada numa familiaridade, mas nisto que concita e rasga o véu do mundo e nos mostra o estranhamente não familiar.
Sentir-se estranho é possibilidade de ser que nos convoca a sustentar a estranheza, afinal como diz Heidegger: “[…] é mais salutar para o pensamento caminhar pela estranheza do que instalar-se no compreensível” (Heidegger, 1989, p. 200).
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