Atenção! Esse texto é uma descrição resumida da aula ministrada por Kadu Santos para os membros da quadratura no dia 17/09/2025 de forma remota.

Data: 17 de setembro de 2025
Horário: 10h30

Professor Kadu Santos: Bom dia, pessoal. Hoje eu planejava ministrar a conferência sobre o sétimo parágrafo — a instanciação do “hoje” através do pensamento das ciências do espírito. Mas decidi declinar disso por um motivo plausível: Heidegger faz uma menção honrosa a Spengler, um pensador fundamental para esse trecho, e eu não tenho familiaridade suficiente com sua obra. Sentiria que estaria lhes oferecendo menos do que merecem. Prefiro pesquisar a fundo, trazer algo mais robusto e digno do tema. Por isso, retomamos hoje um tema coringa, mas urgente: a serenidade

Precisamos, mais do que nunca, voltar a esse tema. Ele nos ajuda a assentar a mente num tempo de celeridade, de pensamento calculador, de pressa insana. Tudo bem, para vocês? 

(Respostas afirmativas) 

Ótimo. A serenidade é um tema caro a Heidegger, especialmente a partir dos anos 1940. Ele a aborda num discurso de 1955, em homenagem ao compositor Conradin Kreutzer, e num diálogo fictício entre um erudito, um pensador e um professor, chamado Uma Conversa sobre a Serenidade. Vamos explorar a proposta dele, fazer um pequeno apontamento sobre o Mestre Eckhart — uma grande influência mística em Heidegger — e, por fim, compartilhar minha própria reflexão sobre o que considero uma “mística” possível hoje, inspirada também em Nietzsche. 

Antes de começarmos, proponho um exercício prático de serenidade: abandonemos, por ora, a vontade de compreensão imediata. Vamos pensar praticando. Como nas práticas budistas: não há doutrinas prontas, mas gestos, acenos, indicações formais — algo não preenchido, apenas apontado. Nossa tarefa é nos preencher com esse modo de ser, experimentá-lo na vida prática, e não apenas intelectualizá-lo. 

Pode falar, Ouvinte T. 

Ouvinte T: Quando você fala em “atravessar o campo da mística”, isso se refere ao que alguns chamam de “sobrenatural”? 

Professor Kadu Santos: Você quer adiantar o percurso, hein? Vamos caminhar juntos. Mas sua pergunta é ótima, e podemos introduzi-la já a partir de um texto de Heidegger, A Pobreza

Ele diz: “Uma longa tradição do pensar oferece-nos uma grande variedade de respostas à questão: o que é o espírito? Diz-se que o espiritual é o contrário da matéria, o imaterial. Porém, essa definição fica presa à simples negação da matéria.” Ou seja, dizer que espírito é “não-matéria” é uma definição vazia. A própria palavra grega pneuma (e a latina spiritus) remete ao sopro, ao ar, à força ativa da iluminação e da sabedoria — em grego, sophia. Filosofar, portanto, não é apenas uma disciplina acadêmica; é essa relação espiritual que ultrapassa, mas não nega, a matéria. A cisão entre material e imaterial é uma armadilha — uma negação que nos afasta da unidade. 

Ouvinte T: Concordo plenamente. Essa negação não faz sentido. Um não existe negando o outro; eles cooperam. Acho que séculos de Igreja Católica nos ensinaram a mortificar o corpo para iluminar o espírito, como se os desejos fossem pecado. Mas hoje, essa polarização não cabe mais. Precisamos de maturidade para entender que corpo e espírito caminham juntos. 

Professor Kadu Santos: Exatamente! E sobretudo numa época de polarizações tão radicais, a mensagem da cooperação — mesmo na diferença e na divergência — é vital para nosso progresso como humanidade. Fomos capazes de sobreviver e evoluir não por nossa força individual, mas por nossa capacidade de cooperar. Os neandertais, fisicamente mais fortes, não subsistiram. Nós, mais fracos, sim — porque cooperamos. 

Mas voltando à sua pergunta, Ouvinte T: o místico é esse lugar do ainda não conhecido, do que não tem contornos definidos. Não é uma ideia clara, mas um caminho desconhecido — e, paradoxalmente, quem nele se aventura sente uma profunda segurança, mesmo sem ver, sem entender, sem controlar. É um abandono confiante. Vocês compreendem essa sensação? 

Ouvinte T: Sim. Os grandes místicos — ou até os grandes praticantes de magia — tinham um entendimento profundo do que manipulavam. Havia rituais, saberes. Mas o campo místico é sempre surpreendente, vasto, profundo. Você pode conhecer muito, mas nunca tudo. Se tentar dominá-lo — como tentar dominar o oceano —, se perde no caminho. 

Professor Kadu Santos: Isso! A mística nunca se revela por inteiro. Mantém sempre algo oculto — e é justamente essa a sua beleza. 

Ouvinte M: Fiquei pensando no Gênesis: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente.” Isso me remete a essa força — o pneuma — que anima a matéria, que move, que dá dimensões além do biológico. O vento, o sopro… é movimento. 

Professor Kadu Santos: Exatamente, pneuma. Força ativa. Mas Heidegger associa isso à sophia, à sabedoria. E aqui surge minha dúvida: o que é, de fato, a sabedoria? Tem a ver com inteligência racional? 

Penso, por exemplo, nos animais. Não podemos dizer que formigas são “inteligentes” no sentido humano — elas não têm logos, linguagem articulada. Mas será que não têm sabedoria? Elas preveem o inverno, resguardam alimento, cultivam a espécie. Isso não é sabedoria? É um instinto, sim — mas um instinto profundamente sábio. Enquanto isso, seres humanos, dotados de razão, cometem desastres como Brumadinho — extraem minério sem prever as consequências para o solo, para a vida. Quem, afinal, é mais sábio? 

Ouvinte T: Eu entendo o comportamento das formigas como instinto de sobrevivência — uma ação não raciocinada. A sabedoria, para mim, é quando você utiliza seu conhecimento racional em consonância com seus sentimentos. Muitas vezes, nossos sentimentos nos levam a ações desequilibradas; a sabedoria é o equilíbrio entre saber e sentir. 

Professor Kadu Santos: Mas deixa eu perguntar: qual é a única diferença real entre nós e os outros viventes? É apenas a capacidade de raciocinar e articular linguagem? E se esse “delírio de onipotência” — essa crença de que somos superiores por sermos racionais — for justamente o que nos afasta da verdadeira sabedoria? 

Para compreender o modo de ser de uma formiga, eu precisaria ser a formiga. Como não posso, só tenho uma relação distante, mediada por uma cisão sujeito-objeto. Nós nos colocamos fora da natureza para descrevê-la, julgá-la, dominá-la. Mas a natureza, em si, é autopoética — produz e sustenta a si mesma. Nós, não. Somos os mais necessitados dela. Será que a própria physis, a natureza como um todo, não é a verdadeira detentora da sabedoria plena? E nós, com nosso racionalismo, não estamos apenas aprendendo, tarde demais, a escutá-la? 

Ouvinte M: Um filósofo que mergulha nisso é Espinosa. Ele fala do “real”, da força vital que está em tudo — uma força de expansão e perseverança. E tem uma ideia fascinante: tudo que é vivo, pensa. De formas diferentes, claro. A mente e o corpo não são coisas separadas; são perspectivas do mesmo. Quando vivemos, somos afetados por singularidades, e nosso corpo “pensa” essas situações — dá respostas imediatas, criativas. A mente, então, reflete sobre o que o corpo pensou. É isso que nos diferencia: essa capacidade de pensar sobre o pensamento. Mas também é o que pode nos desconectar da experiência real — nos tornar excessivamente racionais, frios. 

Ela dá o exemplo do jogador de futebol: ele treina, mas na hora do jogo, é o corpo que pensa, que reage em frações de segundo, muitas vezes de forma criativa, inesperada. Ou do surfista: ele se compõe com o mar, numa compreensão afetiva, não racional. É o afeto que o move e ao qual ele responde. 

Professor Kadu Santos: Heidegger tem uma frase: “Ser é pensar.” E “pensar é ser.” Nesse sentido, todos os seres pensam — porque são. A diferença é que nós somos o ser que pensa sobre o pensamento. Somos transcendentais: saímos de nós mesmos, colocamos o mundo diante de nós. Esse é nosso dom — e nossa armadilha. Quando olhamos para um terreno e vemos apenas “joias a serem extraídas”, não estamos vendo só o terreno; estamos vendo a nós mesmos sendo explorados — porque nossa própria natureza depende daquela terra. 

A pequena diferença é essa: o vivente com logos reflete sobre si e sobre o mundo. O problema não é o pensamento racional em si, mas quando ele perde a base da sabedoria — aquela que nos lembra que somos unidade com o mundo. Sem essa sabedoria, colocar o mundo diante de si vira extraviação, exploração, autodestruição. 

Professor Kadu Santos (continuando): Heidegger, nesse discurso de 1955, faz uma observação dolorosa: “Todos nós, mesmo os que pensam por dever profissional — professores, cientistas —, somos muitas vezes pobres em pensamentos. Ficamos sem pensamento com demasiada facilidade.” 

Hoje, tomamos conhecimento de tudo pelo caminho mais rápido e econômico — e, no mesmo instante, esquecemos tudo. As pessoas não querem o percurso; querem só o destino. Querem um podcast de 5 minutos, não uma conferência de 2 horas. Mas é no percurso que a luz acontece. Nós, aqui, somos privilegiados: não fomos seduzidos pela objetividade rasa e sintética. Queremos o caminho, apaziguado, com serenidade. 

Heidegger distingue dois tipos de pensamento, ambos legítimos e necessários: 

  1. O pensamento que calcula: planeja, investiga, organiza, prevê resultados. É o pensamento das ciências, da tecnologia. Corre de oportunidade em oportunidade, buscando sempre encurtar o caminho, reduzir o esforço. Nunca repousa, nunca medita. Nunca reflete sobre o sentido do que existe. 
  1. O pensamento que medita: reflete, pondera, habita o que está próximo. Não busca soluções imediatas, mas compreensão profunda. Exige esforço, cultivo, paciência — como o lavrador que aguarda a semente germinar. 

Quando dizemos que o “homem atual foge do pensamento”, é desse segundo tipo — o meditativo — que falamos. Alguém pode objetar: “Mas hoje se pensa mais do que nunca! Veja a ciência, a tecnologia!” Heidegger concorda: pensa-se muito — mas que tipo de pensamento? Um pensamento que calcula, que resolve, mas que não questiona seus próprios fundamentos. 

Na época de Heidegger, o grande “milagre” era a energia atômica. Hoje, são as IAs, a automação — tudo com o desiderato de reduzir o esforço humano. Mas esse caminho é desumano. Transfere a humanidade para as máquinas e desenraíza o homem de seu solo — da Terra, do céu, dos deuses, dos mortais (a “quadratura” que Heidegger tanto ama). 

O problema de fundo é a vontade de vontade — o querer humano desenfreado. Desde Descartes, o homem se colocou como sujeito, e o mundo, como objeto a ser dominado. A natureza virou um “posto de abastecimento”, um “fundo de reserva”. E hoje, até o homem virou fundo de reserva — manipulado por discursos de poder, por algoritmos. 

Heidegger, já em 1955, alertava: o homem já perdeu o controle. As forças técnicas que ele criou já superaram sua vontade e sua capacidade de decisão. Lembrem-se daquele experimento do Facebook em 2017, quando dois bots de IA começaram a se comunicar em uma língua própria, incompreensível aos humanos — e os pesquisadores, com medo, os desligaram. Era o primeiro sinal de que a criatura escapava ao criador. 

O pensamento que medita é o antídoto. Ele não exige títulos, status ou silêncio absoluto. Exige apenas repouso — repousar no ser, abandonar a vontade de controlar, de produzir, de saber. A serenidade é isso: uma permissão, não uma conquista. O caminho para o que está mais próximo — nosso próprio ser — é, paradoxalmente, o mais longo e difícil, porque estamos sempre olhando para longe, para o transcendente, para fora — quando a resposta está na vizinhança mais íntima: o nosso próprio Dasein

Heidegger nos convida a uma experiência: ocupar-nos daquilo que, à primeira vista, parece inconciliável. Unir o que o mundo moderno separou: razão e intuição, homem e natureza, técnica e sabedoria. 

Professor Kadu Santos (encerrando): Infelizmente, o tempo voou — já são quase 14h45. Mal começamos a explorar os caminhos práticos da serenidade, a relação com a vontade, com a contemplação… e ainda queria trazer minha perspectiva sobre a mística e o Mestre Eckhart. 

Vou gravar essa conversa e, na próxima semana, em vez do sétimo parágrafo, darei continuidade a este tema. Preciso de mais tempo para pesquisar Spengler, mas a serenidade não pode esperar. Prometo que meditarei sobre isso — e não calcularei! 

Ouvinte M: Nossa, Kadu, estou curiosa! Você vai demorar muito para dar continuidade? 

Ouvinte T: É, acho que precisaríamos de um tempo semelhante a esse de novo, não? 

Professor Kadu Santos: Exatamente. Precisaríamos de mais duas horas, pelo menos. Mas prometo que trarei a continuação na próxima conferência. Vou refletir sobre isso e volto com mais caminhos, mais práticas. Agradeço imensamente a presença e a profundidade de vocês. Até breve! 

Ouvinte M: Até a próxima! Ouvinte T: Até a próxima! Foi ótimo acompanhar esse início da reflexão — dá para rever e digerir as informações. 

Professor Kadu Santos: E o mais bonito é que partimos para falar de serenidade e acabamos mergulhando em sabedoria — e viram como os dois são íntimos? Uma constitui a outra. E ainda demos um salto ousado: pensamos a sabedoria no mundo dos viventes sem logos. Isso não está em Heidegger — foi nosso acréscimo. O percurso promete muitas surpresas. Aguardem! 

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Sobre o Autor

Kadu
Kadu

Escritor, ensaísta, professor de fenomenologia hermenêutica heideggeriana. Pesquisador independente. Linguagem e técnica são suas vertentes de pesquisa. Formado em rádio e tv com mais de duas décadas dedicadas a comunicação. É criador da quadratura, practitioner em PNL, locutor publicitário, radialista, ator e músico. É palestrante e consultor em comunicação com mais de 32 anos de experiência. E-mail: contato@kadusantos.com.br

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